Os quadrinhos como arte de informar: traçando um perfil de Carol Ito

Julia Stoever
6 min readNov 24, 2020
Trecho de “Casulo”, da coletânea “Mulheres & Quadrinhos”. História autobiográfica sobre a relação pessoal de Carol com os quadrinhos. Ilustração: Carol Ito

O jornalismo em quadrinhos é um gênero relativamente novo e interessante para o leitor moderno de diversas maneiras. Ao contrário de privilegiar exclusivamente o texto ou a imagem, essa forma de narrativa encontra seu poder na relação simbiótica entre o visual e o literário, impulsionando seu crescimento em todo o mundo.

Carol Ito, influenciada em grande parte por revistas de mangás, sempre nutriu um amor pelo desenho, embora jamais tenha o considerado uma opção profissional. Sua escolha pelo curso de Jornalismo foi motivada pela diversidade da grade curricular, que abrangia disciplinas como antropologia, sociologia e filosofia, temas que a atraíam profundamente. Ela se aventurou nessa jornada, ciente de que o diploma não era mais uma obrigação. No entanto, sua paixão pela arte jamais se dissipou, continuando a criar ilustrações para projetos, cartazes de festas e até mesmo alguns freelances para colegas de outras áreas. Após cinco anos de formada pela Unesp-Bauru, Carol se tornando não só jornalista, como também quadrinista.

Durante seus anos na faculdade, Carol percebeu que desenhava mais do que escrevia. Intrigada, começou a explorar como poderia aproveitar essa habilidade, considerando que não conseguia se desvencilhar dessa prática. Foi nesse momento que se deparou com o trabalho de Joe Sacco, um pioneiro do jornalismo em quadrinhos. Até então, Carol jamais havia ouvido falar sobre esse gênero, mas viu ali uma oportunidade de unir suas duas paixões. Ela enxergou o potencial de criar algo único e incomum, algo que poderia se tornar um diferencial. Foi assim que decidiu transformar seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em uma reportagem em quadrinhos.

Dessa forma, nasceu sua primeira graphic novel: “Estilhaço: uma jornada pelo Vale do Jequitinhonha”. O trabalho retrata sua experiência de dez dias acompanhando um grupo dedicado a fazer doações No Vale do Jequitinhonha, região noroeste de Minas Gerais conhecida pela seca e por seus baixos indicadores sociais. Inicialmente, a obra foi publicada de forma independente, e o TCC de Carol se tornou pioneiro em sua faculdade. Embora já existissem algumas pesquisas acadêmicas sobre jornalismo em quadrinhos, não havia nenhuma reportagem em quadrinhos que pudesse servir de referência. Assim, a artista se viu como uma verdadeira pioneira nesse campo. Anos mais tarde, ela teve a oportunidade de participar das bancas de avaliação de outros trabalhos no mesmo formato, e testemunhar como algo que inicialmente parecia incerto se tornava uma referência para outras pessoas foi extremamente gratificante.

Trecho de “Estilhaço: uma jornada pelo Vale do Jequitinhonha”, TCC de Carol Ito que também foi seu primeiro trabalho extenso
Trecho de “Estilhaço: uma jornada pelo Vale do Jequitinhonha”, 2015.

Para Carol, o curso de Jornalismo foi fundamental em termos de desenvolvimento da sua escrita: “entendo os quadrinhos como uma forma de comunicação e o jornalismo tem tudo a ver com isso. A faculdade me ajudou a ter esse domínio do texto, às vezes acho até que acaba se sobressaindo a minha capacidade de desenhar, já que nunca estudei desenho de fato”, conta. “Então, boto muita fé no meu texto e nas minhas ideias, pois no final o desenho só é uma ferramenta para transmiti-las”. Em 2014, um ano antes de entregar seu TCC, a artista criou seu blog Salsicha em Conserva, onde posta suas tirinhas até hoje e chegou até a ser indicado ao Troféu HQMIX 2015, na categoria Webquadrinhos. A partir daí começou a se empenhar de verdade no jornalismo em quadrinhos, tornando-se uma referência nesse gênero no Brasil.

“Acho que todos os meus quadrinhos tem política envolvida, apesar de nem todas as tiras serem explicitamente sobre isso. Todas elas pretendem ter uma reflexão politizada, mas a partir de outros pontos, como corpo ou até mesmo a sexualidade. A política faz teoricamente a mediação de todas as nossas relações.”

Atualmente, é jornalista freelancer. Já foi repórter da Revista Trip e Tpm, e também está envolvida em outros projetos, como o Políticas, uma página de quadrinhos políticos feitos por mulheres (cis e trans) e pessoas não-binárias. Carol decidiu criar esse espaço justamente para encorajar mais mulheres e pessoas LGBTQIA+ a participarem das discussões públicas por meio dos quadrinhos. Ela reconhece que, infelizmente, no meio da imprensa, há poucas mulheres publicando e que não há muitos espaços sendo cedidos para que elas se expressem. O projeto é um estímulo para que mais artistas surjam e saibam que existe um espaço no qual podem publicar.

Uma qualidade notável no trabalho de Carol Ito é sua capacidade de demonstrar como os quadrinhos podem ser utilizados para abordar pautas políticas e sociais importantes. Ela se esforça para utilizar seu trabalho em prol do coletivo. Embora também crie produções mais intimistas e introspectivas, as reportagens em quadrinhos se tornaram sua ferramenta para promover causas nas quais acredita e para dar visibilidade a assuntos que considera negligenciados. Carol vê sua atuação como um papel social, talvez até mais do que artístico ou individual. Neste ano, ela lançou mais duas HQs-reportagens: “Prisões de Dentro”, que relata sua visita a um presídio no município de Serra, no Espírito Santo, para conversar com homens acusados de agressão e assassinato de mulheres; e “Mulheres da Craco”, uma reportagem sobre a vida de mulheres cis e trans que vivem na Cracolândia e seu cotidiano durante a pandemia.

Trecho de “Mulheres da Craco”
Trecho de “Mulheres na Craco”, 2020.

A Cracolândia é uma questão de saúde pública que o Estado insiste em tratar com violência. Em meio à pandemia, esse território enfrenta ainda mais dificuldades, e as mulheres acabam sendo as mais vulneráveis nesse contexto. Carol Ito destaca a falta de abordagem desse recorte na imprensa e se questiona por que o assunto é tão pouco explorado e marginalizado: “Sempre me questionei o por que é um assunto tão pouco comentado. A mesma coisa com a questão do cárcere: como não se discute cárcere a sério no Brasil? Apesar de serem espaços diferentes, essas pessoas vivem numa situação muito precária, não só de humilhação”. A falta de seriedade nos debates e a persistência de tabus e moralismos em torno desses temas indignam a artista profundamente.

Trecho de “Prisões de Dentro’’, 2020.

Reportagens polêmicas como essa precisam ser apuradas com responsabilidade, de modo a evitar endossar qualquer forma de violência ou comportamento prejudicial. Segundo Carol, como repórter, não se pode abordar essas questões armado com teorias preconcebidas. É necessário fazer um esforço máximo para enxergar a humanidade do outro, mesmo que essa pessoa seja um criminoso, pois essa pessoa passou por experiências muito diferentes das nossas. A entrevista com agressores enquadrados na Lei Maria da Penha foi uma experiência extremamente interessante para a jornalista. “Muitos deles vieram de um contexto de periferia, de pobreza extrema, onde existe uma certa naturalização da violência, não só entre homens e mulheres, mas em todas as relações. Então, como esperar que essas pessoas não a reproduzam?”, questiona. Se desumanizamos, não discutimos de verdade. Acho importante falar dessas questões para que sejam discutidas num nível de sistema, de Estado. São histórias muito complicadas e complexas para colocarmos num lugar maniqueísta de ‘errado’ ou ‘certo’, ‘bom’ ou ‘ruim’. Mas admito que fiquei com um pouco de medo de tomar porrada nas redes, de acharem que estava passando pano para agressores. Mas no fim, minha reportagem foi muito bem recebida. E não tiraram minha carteirinha de feminista (risos)”.

Ilustração: Carol Ito

Nos tempos de pandemia e crise, a arte tem sido cada vez mais invocada como uma ferramenta para compreender o momento atual. As análises sociológicas ou filosóficas não conseguem traduzir totalmente o que sentimos e vivemos, e é aí que a arte desempenha um papel crucial, adicionando uma dimensão adicional nessa tradução do mundo. Ao longo da entrevista, Carol destacou sua crença de que a arte tem a capacidade de antecipar o futuro, permitindo a criação de novos universos e possibilidades. Essa capacidade de imaginar novos mundos é especialmente importante diante da incerteza do mundo pós-pandemia. Os artistas têm a habilidade de antecipar, provocar reflexões diferentes daquelas encontradas em áreas mais racionais ou pragmáticas.

Carol Ito não apenas relata suas experiências e pautas, mas também as ilustra, permitindo que os leitores não apenas conheçam situações que raramente são abordadas pela mídia tradicional, mas também reflitam sobre elas. “Foi ao cobrir situações complexas que aprendi a ser uma repórter mais responsável e ética”, concluiu a jornalista, quadrinista e ilustradora. Para ela, criar quadrinhos políticos é inevitável, uma forma inescapável de expressar sua visão e envolvimento com o mundo ao seu redor.

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